( aperte o alt ) "Adágio" • Edição Nº48
Adágio
Era uma terça-feira como qualquer outra terça-feira, desde que o mundo é mundo. Nada havia que anunciasse a sua chegada.
Veio o sol, escondido por algumas nuvens cinzentas, pesadas, o que deixava a manhã fria e prateada. Ele veio caminhando pela larga rua de paralelepípedos, onde desembocava uma infinidade de pequenas e estreitas ruelas, como afluentes em um rio. Ainda era cedo demais, pouco movimento havia por ali: um padeiro organizava, na vitrine, a primeira fornada do dia; uma senhora puxava um carrinho de feira vazio, rumo ao seu debate sobre o preço das verduras; um cachorro espreguiçava e abria a boca em um bocejo contagiante.
Aos poucos, a pequena cidade despertava, preguiçosa.
Não avisara que chegaria naquela manhã.
Isso o deixava, ao mesmo tempo, ansioso e apreensivo: talvez já nem estivesse mais ali, talvez não o quisesse receber, talvez o tempo já tivesse levado consigo as idéias e possibilidades que ambos alimentaram.
(Talvez fosse apenas covardia.)
Mas se a porta se abrisse, e se ele entrasse naquela sala, poderia contar a respeito dos lugares onde esteve, contar a respeito dos pores do sol que viu enquanto o Kailash se impunha no horizonte, do chá de manteiga que o manteve aquecido durante o frio indescritível, do trem que, não importava como, pegou um caminho errado (como um trem pega um caminho errado?) e acabou levando-o a um destino tão remoto que mesmo a ideia de haver trilhos que chegavam até lá parecia absurda. Contaria de dias longos e de noites sem fim.
A sola dura dos seus sapatos fazia ecoar longe o som das passadas.
Desconfortável como um intruso, parecia sentir sobre si todos os olhares, ainda que invisíveis, ainda que protegidos por cortinas de seda e venezianas de madeira. Poderia jurar ouvir alguns soluços de espanto, de quem um dia o conheceu.
No final da rua, a casa pouco havia mudado: os três degraus de madeira, que davam as boas-vindas à varanda, continuavam lá, e nela estava, agora, uma grande cadeira de balanço, que parecia ter sido colocada ali para nunca mais sair. Havia plantas penduradas nos quatro cantos, e um pretensioso bebedouro para beija-flores, oferecendo tragos aos passarinhos por oito saídas diferentes. Um espanta-espíritos se entregava ao vento, que soprava suave e perfumado com os últimos suspiros das damas-da-noite: parecia anunciar, como um colega encorajador, que tudo ficaria bem.
Ele subiu os degraus e alcançou a entrada. Respirou fundo e vestiu um sorriso nervoso, enquanto pousava a mala surrada ao lado do pequeno tapete à frente da porta. Bateu três vezes. Passos lá dentro anunciavam a aproximação de alguém. Apressados, marcavam também, agora, o compasso do seu coração.
Abriu-se a primeira porta.
Os olhos dela, que primeiro estavam em si mesma para ter a certeza de que estava apresentável, demoraram a subir e encontrar os dele.
Mas encontraram.
E a cor fugiu do seu rosto, e a boca deixou-se abrir, e o chão pareceu sumir.
Ele tirou o chapéu.
Foram longos minutos de silêncio, olhando-se através da porta de tela. Então finalmente ela a abriu, e sem dizer palavra, afastou-se do caminho, para que ele pudesse entrar.