"'Sempre seu," • ( aperte o alt ) - Edição Nº7
Sempre seu,
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8 de fevereiro
Tu não acreditarias no frio. Ou na chuva. Ou no vento que açoita as árvores, ou no quanto elas reclamam quando dobram-se sobre si mesmas, forçadas a agarrar-se à terra, temendo desabar sobre pedras e estradas e rios ao redor. Nas poucas vezes em que algum silêncio tenta aparecer, um lobo (acho eu) fareja a calmaria e aproveita para rasgar a noite com seu uivo. Assustador. Eis a tal temporada de chuvas, sobre a qual todos me alertaram, mas que só agora parece digna da minha atenção. Tolo.
Felizmente está quase terminada a nova cabana que pretendia construir, como contei na última carta. Aliás, desculpe-me a demora para escrever-te: papel não é das coisas mais fáceis de se encontrar, e mesmo o correio só sai uma vez a cada vinte ou trinta dias, que é quando, geralmente, aproveito para ir à cidade e comprar algumas das coisas de que preciso: geralmente sal, farinha e carne-seca, por serem mais duráveis, um pouco de uísque para ajudar com o frio e com o sono, e café, por ser meu vício e único companheiro: há pouco mais de uma semana, Daniel partiu sem dizer o motivo, ou para onde ia, ou o que quer que fosse. Eu perguntei como se o fizesse ao vento, até que deixei que ele, o vento, o levasse. Então já não sei dizer a que distância está a alma viva mais próxima, e nem mesmo se há algum vizinho. Assim, eu e este lugar, que agora me acomoda sozinho, passamos juntos por nossa primeira grande provação: a madeira range sob o castigo da borrasca, e temo, por vezes, que as árvores das quais falei reconheçam algum dos seus parentes nas tábuas da parede, e caiam sobre minha cabeça, por pura vingança. Não quero que te preocupes, no entanto: tenho comigo a carabina ofertada por teu pai e a Bíblia que leio todas as noites. Hoje, há pouco, li uma passagem que dizia: “ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, pois Tu estás comigo.” Mesmo conhecendo o texto de longa data, parece que só agora o entendi.
Já é madrugada, e escrevo à luz de um toco de vela, ao lado do que chamo de cama: um tapete que troquei por meia dúzia de coelhos, coberto por um lençol que Daniel deixou aqui. Há goteiras, muitas, e por vezes parece chover mais aqui dentro do que no descampado. Não importa o quanto eu cubra o telhado, a água sempre encontra um caminho. Espero ansioso por conseguir arrematar o que falta na nova cabana e, enfim, me estabelecer ali.
O fogareiro que tu, milagrosamente, conseguiste enviar, tem sido de uma utilidade que mal posso descrever, e a preocupação que tenho por mantê-lo a salvo é maior até do que aquela que tenho por mim. Gosto de pensar, quando o acendo, que és tu quem me está mandando seu calor. Penso em teu rosto, em teu sorriso, e abraço-me ao véu que usaste em nosso casamento. A saudade, às vezes, parece prestes a roubar-me a razão.
Há uma coisa que quero pedir-te. Que encontre Henrieta, e que diga que está tudo bem, que é hora de entregarmos o passado ao tempo que a ele pertence. Tenho tido muito tempo para pensar: o trabalho ocupa-me as mãos, mas não a mente, e meus pensamentos vão muito além do buraco de rocha que me consome os dias. Numa das vezes em que estive na cidade, ouvi na mercearia um jovem comentar sobre um explorador que não soube manusear a dinamite e acabou por explodir a si mesmo. Histórias como essa, somadas à solidão forçada, fazem tudo assumir uma nova perspectiva. Ficarei mais tranquilo quando souber que meu pedido foi atendido.
Diga a teu pai que as ferramentas estão mostrando-se tão robustas quanto ele prometeu. E que acredito que, muito em breve, estarão trazendo à luz do dia aquilo que vim buscar. Agradeça a ele, muitíssimo, o voto de confiança que me dá, inclusive enquanto a deixo aí. O que faço, faço por todos nós.
A vela, agora, anuncia sua despedida, por isso preciso apressar-me na minha. Quando leres esta carta, já terei feito minhas tais compras e já terei, em mãos, mais do papel que encomendei: espere uma carta mais recheada da próxima vez. Podes estar certa de que já a estou escrevendo.
Lembranças a todos.
A ti, as palavras que te sussurro aos ouvidos, que são só nossas.
Sempre seu,
R.
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