"R" • ( aperte o alt ) - Edição Nº9
Uma resposta.
R.
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30 de julho
As noites são tão longas que às vezes me parece não haver dia que separe uma da outra.
Além da escuridão infindável, a estação das chuvas parece igualmente persistente: não há meios de vencer as goteiras, e a cada novo período de descanso, vejo-me obrigado a mudar de lugar a esteira onde durmo. Impedido pelo cansaço, e pelas águas, de aventurar-me à noite pela região, aprendi a tirar proveito da situação: em troca de alguma caça, consegui um lampião que me tem feito companhia, e à luz do qual leio minha Bíblia e escrevo algumas notas. Venho fazendo também um pequeno desenho, um mapa, para marcar por onde já passei. Hei de contar para nossos filhos, com a ajuda do caderno e das nossas cartas, a história de como chegamos aonde chegarmos.
A estada parece estender-se para além da sanidade, mas sei que não para além do que sonhamos, para além daquilo que prometi a ti e ao que empenhei a confiança de teu pai: faltam-me palavras para agradecer o suficiente a ambos. Ainda que eu saiba que não há viva alma por boas milhas em qualquer direção, faço questão de trazer as ferramentas que me foram dadas por ele, apesar do peso, todos os dias para a cabana; sinto, assim, como se ele próprio caminhasse comigo por todo o caminho, e me incentivasse a continuar um pouco mais.
Nos breves dias onde a chuva não cai, costumo demorar um pouco mais no trabalho, preferindo realizar algumas melhorias por aqui: as paredes já não balançam tanto, mesmo quando o vento açoita forte. Construí, também, um pequeno abrigo: há algumas semanas tenho sido visitado por um lobo que, curioso, mantém-se à distância, observando-me quase todos os dias. Nesta solidão que supera com facilidade a prudência, passei a deixar alguma carne do lado de fora da cabana, e ouço quando ele a vem buscar. Ainda não o vi no abrigo, mas sei que já esteve lá: em uma manhã, o pano que lá deixei estava remexido e cheio de pelos, e quase não havia água no pote. Pensei em batizar meu novo amigo, mas me ocorreu pedir a ti que o faças: será reconfortante ter mais esse elo de familiaridade por perto.
Vejo que, na cidade, essa minha insistência não sabem eles no quê está despertando curiosidade. Quando vou até lá, o que é cada vez mais raro, gosto de manter-me silencioso e distante: o mistério assusta, e prefiro pagar o preço da solidão, sendo visto como louco, a despertar a cobiça daqueles que, mais cedo ou mais tarde, aparecerão para descobrir a que vim.
Quanto ao que disseste sobre Daniel, lembro-me do alerta que fizeste antes que embarcássemos. O vendeiro, homem que me parece correto e um dos poucos com quem falo, enfim sentiu-se à vontade para dizer que estranhara quando o viu ir embora. Estive lá para comprar charque, e aparentemente o bom comerciante por algum motivo ansiava dizer-me o que disse, porque usou a carne como pretexto para puxar o assunto: disse que Daniel estivera ali e que também comprara charque, além de cerveja, em quantidade, antes de partir para os trens. Disse que parecia ansioso e não dava conversa, limitando-se a pagar além do necessário e a sair sem esperar pelo troco. Respondi que tudo me parecia muito estranho, mas que era perigoso partir para qualquer julgamento. Seja como for, meus dias estão entregues às mãos de Deus e por isso não nutro qualquer temor.
Não podes calcular a felicidade que me traz ver resolvida, enfim, a questão com Henrieta. Como já disse, muito tem entrado em perspectiva neste tempo: o que realmente tem ou não tem valor, o que é importante alimentar e o que é preferível deixar desaparecer. Por mais isto, obrigado. Creio, também, ter recebido todos os potes da compota. Permiti-me comer um por inteiro, de uma só vez, e confesso que o fiz com lágrimas nos olhos, num misto de felicidade e saudade. Posso afirmar que cheguei a ver tua avó preparando os potes. Já os outros fui consumindo aos poucos, invariavelmente relendo tuas palavras, e imaginando a delicadeza das tuas mãos apoiadas sobre o papel, com a luz das velas refletidas em teus olhos.
Ouço barulho na porta. Meu novo amigo veio buscar o jantar. A chuva está mais forte agora. Prefiro terminar esta carta aqui, antes que alguma água caia sobre ela e as palavras se percam em borrões. Agradeça à tua maravilhosa avó pelo carinho. Agradeça, novamente, a confiança de teu pai. Agradeça, aliás, a todos, por não apenas entenderem o que pretendo, mas por darem apoio a este que mal entrou para a família. Todos vocês estão sempre em meu coração e em minhas orações. E tu estás também em meu espírito.
Com o amor que não pode ser expresso em palavras,
R.
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