no leito perfumado ( aperte o alt ) - Renato Alt - Edição Nº5
"Quando à noite"
no leito perfumado
- Tiro daqui os cacos, seu sorriso se refaz inteiro - a senhora deu uma piscada de olho, sorrindo, ela, também.
Assim a menina - sim, refeita - subiu correndo a primeira escada que viu. Parou, pensativa. O pote que pegou era daqueles de uma prateleira alta: dos que a velha dissera não serem pra se pegar: “acho que alguém, que veio antes de mim, colocou todos esses aí. Mas não veio ninguém, pois não?"
A garota colocou-se na ponta dos pés, na ponta das sandálias, fazendo seus dedos tão vermelhos que pareciam prontos a explodir, fazendo ranger, reclamona, a escada de madeira. Arrastou o pote, levantando a poeira que, supresa, viu-se forçada a mexer-se, e desfazendo as teias de uma aranha enorme e preguiçosa, e arregalando os olhos daquela senhora da idade do mundo.
(Não, não do mundo.)
- Olhe lá, menina, que você cai. - disse com a voz de quem já falou por tempo demais, a ouvidos demais, enquanto andava por sua loja que cheirava a almíscar e a açúcar, a pó e a jasmim; enquanto andava por sua loja que não tinha porta e não tinha nome, e onde o sol era sempre o sol de um dia de verão à tarde, invadindo as frestas da parede e transformando em pequenos pontos de luz as milhares de partículas que dançavam no ar.
Mas a menina abraçou o pote, desceu cuidadosa, e tentou olhar o que os anos de pó tentavam esconder.
- O que está aí - começou a velha - é um sonho antigo demais para se sonhar hoje, quando os dias são outros. Você sabe, minha criança, que o que há hoje são árvores antigas e sábias que viraram papel e palitos de dentes, e um sol aprisionado por janelas embaçadas por fumaça de café, e águas de rios que desembocam em garrafas de plástico, daquelas práticas pra se ter na bolsa. Esse sonho aí que você pegou é sonho daqueles que não se sonham mais, que não se pensam mais, daqueles que são esquecidos antes mesmo que alguém acorde. E se são esquecidos, bom, também não há quem queira lembrar, pois não?
A menina estava deslumbrada: via cores e sombras e luzes e caminhos e portas a abrir. Via um mar infinito, e via o que ele esconde. Via a si mesma em um sem-fim de florestas, de flores e de aromas, de luzes e cogumelos e troncos cobertos de limo, sobre rios tão claros em que mal se via a água. Via bichinhos que não entendia coberto de cores que não conhecia, e eles corriam e pulavam e fugiam e a olhavam e sumiam, apressados e felizes.
- Ah, pois sim - continuou a velha, dando a volta no balcão. - conheço esses seus olhos, ah, conheço, e sei aonde levam. Cuidado, criança, que a vida não é para quem sonha demais, pois não? - E com sua pá e sua vassoura retirava os cacos daquele outro pote, estilhaçado no chão: o sonho de alguém, mais uma vez, feito em pedaços por outro.
As mãos suadas da menina forçavam a tampa, rodavam, deslizavam. Ela, a tampa, travada, teimosa, não se deixava girar.
- O que há, senhora, que não consigo sonhar o que aqui está?
Apoiada na vassoura, e num suspiro, a velha:
- E sozinha não vai abrir, criança. - disse, com um sorriso paciente - O sonho que o que aí está... é sonho pra mais de um sonhar.
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In dreams, I walk with you