Lânguida fronte no sonhar • ( aperte o alt ) - Edição Nº6
"Quando à noite", terceira parte: já perto do despertar.
Lânguida fronte no sonhar
Virou-se novamente para a direita, e percebeu outra estante enorme; poderia jurar que não estava ali um segundo atrás. A velha, ocupadíssima com alguma coisa impossível de entender, permitiu-se olhar para o lado e também um breve sorriso. Ainda que dissesse que, de onde estava, a menina jamais conseguiria alcançar o que queria, de nada iria adiantar: "os jovens precisam aprender por si mesmos, é o que digo." E era sim o que dizia, desde antes de o tempo ser tempo, ainda que talvez eles, os jovens, nem recordassem do que haviam aprendido quando, pela manhã, lhes acordassem os cheiros de café e de bacon torrado. "Sonhos são só sonhos, se não houver quem deles se lembre, pois não?"
A menina passeou com os olhos por todos os potes, passeou com os dedos por tampas sem fim, por teias de aranha tão firmes quanto cordas, por uma poeira que se recusava a sair do lugar.
- Se são sonhos o que esses potes contêm, – perguntou, enfim – por que estão assim, tão fechados?
- Porque são sonhos que ninguém quer sonhar, criança. – respondeu em seu velho tom maternal – ou porque já foram sonhados, ou porque nunca encontraram seus sonhadores.
O rosto da menina era uma interrogação.
- Foram sonhados mas continuam aqui?
- Porque não os sonharam até o fim. Porque os esqueceram. Então ficam ai, esperando, pacientes, mesmo que sono algum jamais os chame de volta.
A velha franziu o cenho, pensativa, e a menina preferiu guardar outra pergunta para quando as rugas, naquela testa sem idade, tivessem sumido ao menos um pouco.
O cheiro de chuva, que vinha da janela, diminuiu, mas estava lá. Um imenso relógio de chão agora parecia dominar toda uma parede, e mais uma vez a menina teve a certeza de que, como fora com a estante, ele não estava ali. Mas, afinal, era como tudo se passava naquele lugar: repentinamente, sem lógica, enquanto, ao mesmo tempo, fazia pleno sentido; apenas por estar lá.
Mas... - não resistiu – porque é que guarda todos aqui, empoeirados e amontoados, nessas prateleiras sem fim? Por que a senhora não lança um tanto deles fora, limpa o mofo, desfaz as teias?
A senhora, como sempre, apenas sorriu e apoiou-se, então, em sua bengala, espetando-a sem dó no antigo chão de madeira, que rangia, reclamão.
- Porque um sonho não se joga fora, criança. - Respondeu - Ele pode ficar guardado, esquecido, por muito tempo; mas nunca pode estar onde não se possa mais sonhar.
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capa: "A Silver Morning", George Inness