"Ciranda" • Edição Nº 1
Ciranda
Todos os dias ele precisava organizar a beleza do mundo.
Não lembrava ao certo de quando lhe fora dada a responsabilidade, mas sabia que, agora, dele dependiam milhares de turistas afoitos, munidos que estavam com seus cartões de memória de 1 terabyte, com seus guias American Express, com seus bonés coloridos e flâmulas para não se perderem do grupo. E tinha de ser antes do almoço: nessa hora, dar comida aos cães era prioridade.
A ordem era sempre a mesma: primeiro, a Europa, ainda que o Cristo estivesse por cima de todos, de braços abertos, pedindo colo.
As torres: Eiffel e Pisa. Para a primeira, entoava a Marseillaise; para a segunda, uma tarantela qualquer (ainda que, quase sempre, cantasse uma que ouvira em Montenero di Bisaccia, quando lá esteve à procura das raízes da sua família), cantada a plenos pulmões: tentava compensar a falta de criatividade com alguma afinação, apesar de sua voz já estar, há muito, comprometida. Para o Taj Mahal, não conseguia cantar música alguma; por isso, citava alguns nomes do Mahabharata e seguia, apressado, adiante: era hora da Acrópole.
Vinha Petra, vinha Chichen Itza, vinham todas as outras maravilhas e todos os outros marcos e, enfim, o Cristo, coroando o Corcovado.
E viu ele que era bom.
Assim, afastava-se, sentando no banco de madeira da praça, logo à frente. Passava longos minutos admirando o que fizera, e coçava o queixo sob a barba, e ouvia os urros de gratidão de todos aqueles que viajavam o mundo e que, enfim, podiam ver tudo o que ele havia preparado.
Satisfeito, pegava o jornal: geralmente o do dia anterior ou ainda o do dia antes desse, mas devorava-o como se fossem informações privilegiadas. Lia inteiro, às vezes bradando a respeito de um ou outro assunto, expressando-se com palavras incompreensíveis. Os cães, ao seu lado, pacientes, permaneciam deitados.
Eram seis e meia quando a senhora, que trabalha na limpeza do prédio em frente, chegou. Como fazia todos os dias, ela lhe entregou café e pão, e esperou que ele perguntasse as horas. Ele perguntou, ela disse que eram seis e meia, e ele agradeceu pegando sua mão numa vênia.
(O segurança do tal prédio em frente já a repreendera diversas vezes, por causa de “doenças e coisas assim”, por causa das garrafas e latas que aquele homem colocava, num ritual, sobre os bancos todas as manhãs. Mas ela repetia que não havia qualquer problema e que, na pior das hipóteses, bastava lavar a mão. O homem era respeitoso, e era isso o que importava.)
Aos poucos, o centro da cidade acordava. Ouvia-se as portas corridas sendo suspensas, os ônibus chegando, com seus ruidosos freios reclamões, aos seus pontos finais, e os estudantes a caminho da universidade, que sempre passavam por ali. A figura barbuda com a qual cruzavam já era velha conhecida, um personagem do folclore das ruas e das turmas. Por educação, ou tradição, ou apenas para parecerem mais sensíveis do que os outros e assim conquistar maior atenção das garotas, alguns desses alunos o chamavam pelo titulo que um dia, num passado que já não podia mais precisar, aquele homem ostentara. As meninas, por sua vez, tinham algum medo.
- Salve, doutor!
E ele, feito inteiro de sorrisos ébrios, saudava a todos, despreocupado que estava de explicar qualquer assunto, despreocupado que estava de justificar a própria existência e o próprio arremedo de vida em que agora vivia, e ao qual foi lançado por uma história que ninguém se prontificava a ouvir: talvez, e isso já lhe disseram, ouvissem em outro momento, mas não naquele, com a aula já prestes a começar.
Então, cantarolando uma das musicas que ouvira um dia numa gaita-de-foles ao lado da Catedral de Santiago, em Vigo, ele dançava em volta de si mesmo, em volta das maravilhas do mundo que guardava em seu saco de estopa, enquanto as pessoas da cidade seguiam para seus cafés e croissants e elevadores e afazeres, enquanto seus cães o olhavam, cúmplices, sobre o cimento da calçada.