( aperte o alt ) - "Vértice" • Edição Nº27
Vértice
O chão pareceu sumir, quando ele finalmente deu um passo em direção à porta.
Na verdade, o nervosismo o deixava em dúvidas se queria mesmo estar ali.
Tempos atrás, numa busca pela própria identidade, encontrou um endereço perdido, e se esforçou para tentar fingir que isso não importava: afinal, era o lugar onde talvez estivesse quem o deixou para trás, quem nunca o procurou, quem nunca se preocupou em dar qualquer tipo de explicação.
Mas é aquilo: ação e reação. Decisões têm consequências.
Claro, odiava pensar em si mesmo como uma consequência. Ao mesmo tempo, era exatamente assim que se sentia, e a idéia permanecia sempre ali, no cantinho da memória. De vez em quando, surgia gritando, mais alto do que qualquer outro pensamento.
Foi assim que chegara até ali, naquele corredor de tacos soltos, castigados pelo sol, num prédio esquecido de um bairro onde ninguém mais ia, diante de uma porta fechada.
Segurava o documento. Uma das mãos estava dentro do envelope, como se segurasse uma pistola, pronta para disparar.
Alguém tossiu, do outro lado da porta.
Ouviu uma voz cansada, mal humorada, perguntar quem é que estava ali.
Ele não respondeu.
Lágrimas desciam pelo seu rosto. Nem percebeu que, agora, estava amassando o papel, que enfim lhe dissera quem era e de onde viera, mas que não dizia a razão. E era essa razão o que ele tinha ido buscar.
De repente, uma risada vinda da rua o trouxe de volta a si, num susto: pela janela do corredor, viu uma menina, com mais casacos do que o frio pedia, correndo atrás de uma pipa que o vento reclamou.
- Quem tá aí? - a voz cansada, insistindo, pareceu ter encontrado energia para se irritar.
Guardou o documento amassado no envelope. Escreveu seu telefone nele. Deixou-o encostado à porta. Deu meia-volta.
Enquanto enrolava a echarpe e caminhava para o carro, viu que a menina tinha conseguido pegar a pipa. Sorriu.
Sentiu, por algum motivo, que o vento tinha feito isso de propósito, só para lhe ensinar uma lição: parou de soprar apenas tempo o suficiente para que a menina a pegasse de volta, e assim mostrar a ele que nem tudo precisa de muita explicação.
Por causa do frio, o carro demorou a deixar-se ligar.
A busca de toda uma vida parecia, agora, se não resolvida, alcançar alguma paz. Mesmo sabendo que seu telefone dificilmente tocaria, e aquela voz sem rosto não se deixaria ouvir.
O choro era, então, de certo alívio, enquanto os faróis cortavam a noite que começava a chegar.
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