( aperte o alt ) "Terpsícore" • Edição Nº45
Terpsícore
Algumas manhãs, especialmente as chuvosas como aquela, pareciam despontar só para ela.
Levantava-se lentamente, procurando os chinelos com os pés, no quarto tão escuro quanto conseguira deixá-lo. Andava até as cortinas com a esperança de ver as gotas estourando na vidraça e, assim, abrir um sorriso que só elas são capazes de lhe dar. Abria um pouco a janela e deixava molhar rosto e mãos, deixava o perfume da grama encharcada na colina, encostada à parede, invadir o aposento e trazer consigo o frio.
Então lembrava-se de anos perdidos na névoa antes do tempo, quando corria por gramados altos em montanhas das quais as pessoas jamais ouviriam falar. Lembrava-se de sentar à beira de um lago de águas tão cristalinas que mal pareciam existir, enquanto nela via criaturas que reverenciavam sua passagem, quando decidia despir-se e mergulhar. Lembrava-se de ficar ali até quando o sol parecia tocar a água e inundar tudo o que os olhos alcançavam com um vermelho vivo, intenso; lembrava-se de quando o via, cerimonioso, enfim render-se a uma lua majestosa, imensa. Lembrava-se de dançar noite adentro, abençoada pelas estrelas e pelos olhares dos deuses.
E, claro, lembrava-se das tormentas. Lembrava-se de celebrar sua vinda com suas irmãs, de braços abertos. Ri quando vê, hoje, esses homens e mulheres que escondem-se das gotas mal elas aparecem, que correm procurando abrigo, que trancam-se em casa à luz de um televisor, mastigando um falatório qualquer, dizendo a uns e outros que ficarão ali porque, afinal, está chovendo.
Em dias como esse, há menos pessoas na rua. Por isso é que lhe trazem à memória os tempos simples, quando era possível parar em qualquer lugar e admirar as pradarias, que estendiam-se para muito além de qualquer fôlego, dando abrigo aos gigantes da terra e aos colossos dos céus; quando o azul do firmamento não era violado por aberrações de metal nem o solo ferido por concreto e asfalto, quando todas as criaturas podiam chamar-se pelo nome, e sabiam do que gostavam, e para onde iam, e por quê.
Encontraria suas irmãs hoje, depois de tantas eras. Viriam com o vento das torres do norte e do sul, e estariam ali, sob a chuva, como faziam desde os tempos antes da História, quando a velha colina dominava a vastidão alcançada pelos olhos, muito antes de se tornarem inspiração e alvo de uma miríade de poetas e músicos, e quando todos os dias terminavam em cores inimagináveis e em perfumes inebriantes.