( aperte o alt ) "Solilóquio" • Edição Nº43
Solilóquio
Não havia muito tempo que mudara para aquela imensidão gelada e, por isso, ainda a deslumbrava o punhado de árvores teimosas, que pontuavam aqui e ali todo o campo coberto de neve; no horizonte, ele e o céu cinzento tornavam-se um só.
A casa não tinha eletricidade, muito menos aquecimento: mas era assim mesmo que ela a queria. Toda a luz e calor que havia no ambiente vinham dos mesmos lugares: um corajoso lampião a óleo, muito surpreso por estar sendo usado novamente, e uma lareira, que imprimia animadas sombras na parede.
E foi ele, o lampião, encontrado adormecido no fundo da enorme e antiga caixa da família, o que deu início àquela ideia romântica - e, claro, um tanto anacrônica - de autossuficiência, de simplicidade, de querer menos; logo ela, que sempre quisera tanto mais, buscara tanto mais, trabalhara por tanto mais! Mas foi esse achado, que pertencia a um tempo onde havia mais pessoas e menos coisas, mais apertos de mãos e menos e-mails, que fez vir sobre ela, numa avalanche de desapego e de cansaço, essa urgência de fuga, de desaparecimento, de estar apenas consigo mesma.
Lembrou da velha casa de pedra, construída sobre um monte de intenções e entregue à outras tantas desculpas e, subitamente, já não se imaginava em nenhum outro lugar: queria apenas cobrir-se, como a casa, da calmaria daquele manto branco, que parecia simplesmente abraçá-la por inteiro, compreendê-la, respeitá-la.
Se pudesse, nem mesmo teria usado o carro para chegar lá.
Com um sorriso, mantinha os olhos perdidos na neve, as mãos dentro das luvas e a manta enrolada ao corpo. Sobre a cama, Salinger e Caulfield repousavam um pouco; a madeira estalava, deixando-se consumir pelo fogo, que fervia a água para o chá.
(Mas a chaleira, ciente das suas responsabilidades, trouxe os três de volta a si, quando assoviou educadamente e avisou estar pronta para distribuir no ar o cheiro de erva-mate.)
E foi ela, novamente, para a cama, para o chá e para si, sem pressa de voltar.