( aperte o alt ) "Salamandra" • Edição Nº36
Salamandra
Naquela noite, saiu do motorhome e sentou-se junto ao fogo. Colocou a grande chaleira sobre a lenha e deixou que as chamas esquentassem seus pés, enquanto reclinava-se na cadeira de praia.
Esqueceu o rádio ligado em alguma estação perdida, que dividia seus minutos entre conselhos de última hora e músicas que pareciam feitas para momentos como aquele: as horas silenciosas. Por isso, poderia jurar que alguém a observava quando, na voz de Neil Diamond, começavam os primeiros acordes de “Solitary Man”. Pôs-se a pensar em como chegara até ali, em como havia se tornado o que era. Pensou sobre onde poderia estar se as escolhas de tempos atrás tivessem sido outras, pensou no que diria se lhe fossem apresentadas, novamente, as mesmas possibilidades, as mesmas pessoas. Pensou em quem poderia ter encontrado pelo caminho e no quanto isso talvez a tivesse levado para um ou para outro destino. Pensou no poder presente em cada palavra, pensou no que dissera a uns e a outros e no que poderia ter acontecido se uma entonação diferente tivesse sido escolhida para pontuar o final de uma ideia.
Enquanto o vento açoitava as árvores, despertando cães que com um só latido convocavam-se uns aos outros para, juntos, desafiarem a lua, imergia nas cores que dançavam na fogueira, acompanhava o trajeto dos pequenos pontos de luz que nasciam das chamas e lançavam-se impetuosamente rumo ao céu apenas para, instantes depois, tornarem-se novamente um só com a noite. - “É melhor queimar de uma vez do que apagar-se aos poucos…” - lembrou de Neil Young, sem perceber que falara em voz alta.
Então, num ímpeto, apertou as mãos e os dedos contra as pernas com tal força que o sangue pareceu sumir de debaixo das unhas. Sentiu gotículas de suor brotarem nas costas, confusas, tentando entender o que acontecia. Sentiu faltar o ar. Cerrou os olhos até ver flashes de luz azul rasgarem suas pálpebras. Enfim, quando conseguiu que a respiração voltasse a ser leve, abriu-os com uma certeza tão profunda que o vento pareceu interromper o próprio trajeto para dar-lhe toda a sua atenção.
Sentiu-o passear por sua pele, refrescar, reviver.
Não havia nada a dizer. E também não havia palavras para o que acontecia agora.
Olhou para a fogueira mais uma vez, e uma gargalhada profunda e doída, carregada de toda uma vida, emergiu feito criatura viva. A chaleira, que a acompanhava há tantos anos, cúmplice, jogou-se aliviada para o lado, ofertando água para levar consigo, às entranhas da terra, toda aquela miríade de sentimentos misturados, indistintos.
Sim, havia algum dinheiro. Havia gasolina. Havia um sorriso surgindo em seus lábios como há muito não acontecia. Havia brilho no olhar. Havia um calafrio, e havia excitação.
Não havia, ainda, destino.
Mas esse, a própria estrada iria apontar.