( aperte o alt ) "Necídalo" - Edição Nº19
Necídalo
Continuava imóvel, convencido de que, talvez, se mais alguns segundos corressem em silêncio, ela reconsiderasse, e pudessem terminar aquela noite como ele a havia planejado desde muito antes. E talvez pudessem perder-se novamente nos braços um do outro, enquanto a noite seguiria seu curso, levando em seus minutos todo resto de mal entendido que as últimas palavras – ou, ainda, que a ausência delas – instalaram naquele quarto, fazendo colar à pele o ranço da solidão.
- Talvez seja o caso de ir embora. – Disse ele, quase sem querer, sem qualquer vontade, na esperança de que a frase fosse interrompida por um "não". Mas as palavras ocuparam o cômodo inteiro, num desconforto indescritível.
- Você é quem sabe.
Arrumou lentamente as poucas coisas que tinha ali: algumas roupas, coisas de toilette, um livro lido pela metade e um dvd emprestado dela, que já não sabia se deveria colocar na mochila ou não. Ela não disse nada. Ele devolveu-o para a prateleira.
Ela o viu juntando tudo, notou sua proposital demora, mas não ajudou. Não o impediu. Continuou sentada na cama, e de lá olhava em silêncio, evitando os olhos dele. Percebeu que ele retirava da bolsa coisas que estavam já perfeitamente arrumadas, dizendo qualquer coisa no sentido de precisar ajeitá-las melhor. Fazia só para ganhar algum tempo, sem saber muito bem o que faria com ele. Esperava que alguma coisa acontecesse. Qualquer coisa. Ela se sentia cobrada, sufocada, encostada à parede, pressionada a emitir algum som. Quando percebeu que quase falou, fugiu para a cozinha, anunciando que tinha sede, e perguntando se ele também queria um pouco de água.
- Não, obrigado.
Fechou a mochila e voltou a sentar na cama, sem saber ao certo como levantaria depois. Ela sentou ao seu lado. Agora já tinha certeza de que ele não passaria a noite ali, e foi por isso que arriscou-se a perguntar.
- Tem certeza?
- Não. Não tenho.
E mais uma vez ficaram ali, por um tempo infinito, até que, num salto, ele levantou-se e colocou a mochila nas costas. Ela assustou-se. Esboçaram um riso, que morreu tão logo percebeu que não tinha lugar.
- Eu te amo. – Ele disse, desconfortável, em um quase desespero. Ela apenas sorriu um sorriso deslocado e o acompanhou até o carro. No caminho, como se o mundo tivesse voltado a girar, surgiram assuntos perdidos, ameninades, ar. Ela deu o braço, e continuaram assim.
Ele abriu a porta, jogou tudo o que tinha no banco de trás e olhou para ela. Sentou-se, colocou o cinto, ligou o carro.
Sorriram, sem saber que outra coisa fazer.
- Me avisa quando chegar. - ela murmurou, inclinada na janela.
Com o rádio tocando alguma coisa de Belle & Sebastian, olharam-se, um na expectativa do que o outro faria. Deram um beijo estranho.
- Tá bom. Eu aviso sim.
Ligou o carro e saiu, ouvindo os pneus amassarem as pedrinhas no chão.
Ela ficou olhando o carro sumir na distância. Ele não quis olhar o retrovisor.
Seguiu dirigindo noite adentro, perfurando veloz a madrugada, dividindo-se entre soluços e sons.
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