( aperte o alt ) - "Melpômene" • Edição Nº15
Melpômene
Eram tantas as coisas que tinha na cabeça que já não conseguia colocá-las em ordem.
Não conseguia nem mesmo dar nomes para todas, mas sabia que estavam lá: tinham forma, tinham cheiro e cor e personalidade. Ela se apresentavam como se estivessem desfilando, feito criaturas diante do criador, esperando ansiosas por serem batizadas, enquanto ele debatia-se em agonia.
Talvez fosse a história de um garoto que se fechara em um sótão até ser descoberto vivo décadas depois, sem nenhum motivo aparente, por quem chegava para demolir a casa, pensando estar vazia; ou talvez fosse um conto de dragões e feiticeiros em uma terra distante e fantástica, só que tem tantos desses já, e o George RR Martin inflacionou demais o mercado. Talvez pudessem ser seres envolvidos em uma batalha perdida no tempo, enchendo os sonhos de uma menina até que ela completasse quinze anos, e aí ela descobriria que a história era toda verdadeira e a guerra acontecera por causa dela.
Mas talvez tudo isso já tenha sido escrito, estudado, catalogado. Talvez esses personagens já estejam gastos demais, com nomes repetidos demais, e já não aguentem mais serem confundidos uns com os outros.
Todas as noites, sozinho em seu quarto, ele encarava a folha em branco, desafiadora, e o cursor piscando como se fosse um toureiro balançando o capote, provocando e provocando. Tinha lá seus vários livros na prateleira, seus velhos amigos da juventude, que o levaram para pescar com o velho Santiago no mar inclemente e até a casa dos Buendía, que ofereceram carona no Durango 95 horrorshow, que o levaram para uns tragos em Nova Iorque com Holden Caulfield e à prisão mental de 6079 Smith W.
Cada um deles está lá, e dessa vez são eles que perguntam para onde é que ele os levará.
Talvez precise de mais café, e de mais do cheiro da madrugada e dos sons perdidos da noite, mais do frio que insiste em esgueirar-se pela janela e mais da letra de Spanish Caravan.
Mas, por agora, segue desconfortável na própria companhia, à espera de alguma coisa que parece estar envolta em névoa e inquietude. De algo que vai fazer disparar seu coração, e cortar seu fôlego, e arrebatar suas mãos e seus dedos em um frenesi incontrolável.
Mas, por agora, ainda está sozinho em seu quarto.
E espera, madrugada adentro.
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