( aperte o alt ) "Intermezzo " - Edição Nº21
Intermezzo
Ele já nem sabia mais há quantos dias caminhava.
Era uma clareira cercada por cedros, e a chuva recente fazia subir do solo o cheiro de terra e de folhas; um cheiro de umidade, que entranhava na madeira e nos ossos. Tinha as roupas encharcadas, e a barra das calças pesavam toneladas, carregando lama gelada e mato. Poderia ser pior: quase perdeu as botas já havia um tempo, quando atravessou o rio, fingindo não ouvir os conselhos daquele homem velho que aparecera, do nada, na outra margem; e que, tão de repente quanto surgira, tinha sumido no ar.
Seguiu adiante porque já se tornara menor o caminho até o fim do que o de volta ao início. E já tinha suportado o frio, os espinhos e os medos que as noites sem fim apresentaram... voltar agora?
Seguia adiante, sozinho.
Encontrou-se com os raios de sol pela primeira vez em muitos dias: a floresta, densa, vinha se recusando a deixá-los passar pelas copas das árvores, mais altas do que conseguia imaginar. Avançava contrariando seu instinto, agarrado com todas as forças àquela pedra que o conduzira até ali, que fazia sangrar suas mãos: mal se podia ver nela, agora, os desenhos, inscrições e a sugestão de mapa que só ele poderia ter levado a sério: afinal, sempre disseram que era só um enfeite, trazido por algum avô gerações atrás, de Tânger, e passado adiante como herança de família.
Mas ele levou a sério. E ele enfim chegara.
Escondida por eras de musgo, de fungos e de histórias para dormir, a porta estava ali. Era real.
Demorou um tanto até entender onde estava: entre duas pedras gêmeas, que talvez servissem de apoio para as mãos quando, em tempos imemoriais, subiam e desciam criaturas que qualquer pessoa de bom senso, o que não era o caso, jamais admitiria terem existido.
O frio da manhã alastrava sobre suas roupas. Percebia, não com os olhos mas com a razão, que era observado, que cada um dos seus movimentos era acompanhado com curiosidade e apreensão. Era esta a hora em que tantos outros, pelo que leu e ouviu naquelas "historinhas para crianças", enlouqueceram; ainda que ele nunca tenha entendido - e agora, menos ainda - quem poderia ter testemunhado a loucura, para a relatar.
Avançou mais alguns passos e, tremendo de frio e de medo, arrancou o mato de cima da porta. Viu a madeira escura, dura como pedra, entalhada com motivos que - ahá! - ele reconhecia: estavam também na sua pedra. Cada desenho fora esculpido com esmero, naquela madeira de árvore desconhecida, que não existe mais, que nunca existira em tempo algum.
A fechadura, de um dourado velho, tentava esconder-se nas trepadeiras e nos fungos fumacentos , mas ele não deixou-se intimidar: da sua bolsa de couro, tomou a chave e encaixou-a, girando com mais força do que pensou que precisaria, até que um estalo seco, ruidoso, malcriado e de uma antiguidade impossível, fez voar por aqui e por ali todo tipo de criatura alada que se pudesse imaginar: ele, no entanto, só as ouvia: por enquanto, não se deixavam ver.
Com força, venceu a relutância da porta e das dobradiças.
Um vento solene, rendido, cheirando a mofo e memórias incontáveis, subiu do túnel negro como breu. Apenas os cinco primeiros degraus de pedra eram visíveis: tudo o mais permanecia engolido pela escuridão, palpável como piche.
Temeroso, mas determinado, respirou fundo mais uma vez, e permitiu-se um último olhar em volta, antes de descer.
Fitando os degraus, avançou com passos nervosos, lentos; sentia como se mergulhasse na garganta de uma criatura da idade do tempo.
Atrás dele, testemunhas silenciosas e invisíveis perguntavam-se se um dia ele voltaria, e se subiria de novo aqueles degraus, e se seria ele quem, afinal, elas estavam esperando há tanto tempo: desde que foram criadas todas as coisas.