( aperte o alt ) - "Filigrana" • Edição Nº11
Filigrana
A casa era antiga, tinha um cheiro frio e úmido, e ao longo dos últimos cinquenta anos não tinha visto qualquer sinal de reforma.
As paredes e o teto perderam, há tempos, a guerra para a umidade, e agora já não faziam o menor esforço para segurar seus rebocos e evitar que caíssem aos pés ou na cabeça de quem se aventurasse pelos corredores. Neles, lado a lado, perfilavam-se imagens de santos tristonhos, escurecidos, há décadas dando de comer a ovelhas esfaimadas ou segurando bebês gorduchos e descascados, cujos olhos miravam horizontes distantes e inatingíveis.
Ele passeou durante mais algum tempo por ali, deixando o carro e o motor desligados do lado de fora, sob a bruma e a friagem, abandonando a lataria à uma fina e tímida camada de gelo. Andava sobre o chão de madeira, acompanhado pelos sons do assoalho, e perambulava pela construção condenada, esquecida, mas que tanto fazia ferver seu sangue e sua imaginação: deixava-se levar para aqueles outros dias, dos quais os tijolos foram testemunha; deixava-se levar para outras impressões, outros humores e outras circunstâncias. Deixava-se levar para risos de crianças que subiam e desciam as escadas, sob a repreensão de suas mães. Deixava-se lembrar do cheiro do molho de tomate e carne. fervendo no fogo e tomando conta de todos os ambientes, interrompido aqui e ali por comentários famintos e ansiosos.
- "Esse cheiro eu conheço!"
Nas paredes permaneciam, vigilantes, algumas fotos pelas quais ninguém se interessara, nem mesmo ele, ainda que não soubesse por quê. Pareciam envergonhadas da própria idade, tentando esconder-se por detrás do do vidro enegrecido da moldura, ansiosas por serem deixadas em paz novamente; mas, dessa vez, ele recolheu-as, e observou os olhos curiosos daqueles que há muito se foram, cujos nomes ficaram perdidos no tempo, junto àqueles que já não mais caminhavam ali. Colocou-os todos debaixo do braço, enquanto andava.
Houve um tempo, muito antes da bruma e do frio, muito antes das heras e trepadeiras, em que ele próprio passeara por ali e desvendara mistérios desconhecidos da humanidade, ouvira sons proibidos, conversara com criaturas inimagináveis e que, agora, mantinham-se caladas, velando o espaço, enquanto observavam seu andar por aqui e por ali.
Houve um longo suspiro e ele apoiou-se na bengala. Tudo aquilo era, agora, dele, mas ele já não pertencia àquele lugar. Havia concordado em ceder a casa para alguma coisa qualquer, que não sabia bem o que era, mas precisava fazer essa última visita: sozinho, acompanhado de todos os que já estiveram ali.
Voltou ao carro, resignado. Sabia que levava, consigo, mais do que poderia expressar. Até sentia vontade de dividir algumas histórias, mas não queria que ficassem sujeitas aos humores de qualquer um: tudo o que vivera ali não merecia o desrespeito de ser escutado por alguém com ouvidos desinteressados.
Com um sorriso, ainda que melancólico, viu todas as lembranças mandarem-lhe um adeus, enquanto seu calhambeque, anacrônico e conservado, dava sua primeira resmungada, e enfim levava-o névoa adentro, até um tempo em que já não mais importava.
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Publicado por Renato Alt