( aperte o alt ) - "Ceifa" - Edição Nº17
Ceifa
O velho falava devagar, pensativo, e tão baixo que parecia não querer ser ouvido, a não ser por si mesmo.
Mas só parecia.
Contava suas histórias todos os dias, para todos e para ninguém, da hora em que o bar abria até a tardinha, quando as crianças saíam em algazarra do colégio e paravam ali para comprar doce de abóbora e conferir se a geladeira dos sorvetes estava enfim consertada. (Nunca estava.)
Nesse meio-tempo, elas olhavam para o velho como quem olha para uma peça de museu, sentado na cadeira de metal, também já torta com o peso da idade. Os frequentadores já tinham oferecido umas tantas outras, mais confortáveis e mais dispostas ao trabalho, mas ele desconversava: já estavam apegados um ao outro. O dono do bar, sem nem mesmo saber bem por que, às vezes não cobrava pelas cervejinhas e por um ou outro petisco recém-saído da frigideira, que colocava sobre sua mesa sem ele nem sequer pedir. Já não lembrava mais de quando o velho tinha chegado ali ou há quanto tempo ele aparecia, como já não lembrava também do que o tinha feito acolher, daquela forma, um desconhecido que nem o próprio nome dissera.
E lá ficava ele, petiscando e falando.
Quem chegasse mais perto receberia um sorriso de cortesia e poderia saborear meia dúzia de palavras soltas, que incluíam alguma coisa sobre uma grande fazenda perdida no interior do Mato Grosso, sobre gente que trabalhava de sol a sol para, no final do mês, ainda ficar devendo dinheiro ao patrão; sobre caminhões que apareciam do nada e que iam embora carregando de tudo um pouco, inclusive alguma daquela gente. Quem chegasse mais perto, e quisesse prestar mais atenção, ouviria sobre quando eles resolveram colocar fogo naquilo tudo e sair correndo mata adentro atrás de qualquer lugar, ouviria sobre dias e noites passados a céu aberto enquanto homens assustados olhavam uns para os outros tentando descobrir de onde vinham os latidos, que ficavam mais perto a cada segundo. E se, à essa altura, alguém resolvesse perguntar, o velho contaria que houve tiros e correria, contaria que acertou com uma pedra, num lance impossível, um cachorro que vinha longe na escuridão. Ele poderia contar que, de todos os que fugiram da tal fazenda, só três chegaram à cidade, e que ele nunca mais os viu. Poderia falar que conseguiu carona por milhares de quilômetros até chegar ali, onde queria chegar, ainda que para ver que tudo estava mudado, que as pessoas estavam diferentes e indiferentes e apressadas, que ele jamais esqueceu o lugar, mas que o lugar tinha esquecido dele.
Uma vez contado tudo, enfim entenderiam por que é que ele ficava ali, todos os dias, e por que é que passeava com os olhos pelas ruas e azulejos, e por que é que deixava-se perder nos próprios pensamentos e por que é que dizia em voz alta a única coisa que dizia em voz alta, o número do estabelecimento, que era 83, e por que é que quando o fazia parecia tão cheio de propriedade, de autoridade, e por que é que, quando o fazia, sorria, ainda que seus olhos ficassem, sempre, marejados.
Mas era mais fácil para todo mundo simplesmente deixá-lo ali, enquanto as mães pediam aos filhos que não falassem com ele e enquanto os adultos o cumprimentavam à distância com um movimento da cabeça, ao que o velho respondia, sempre, fazendo o mesmo e erguendo o copo de cerveja, que brilhava num dourado escuro de final de tarde, de riso de criança correndo e de cheiro de doce de abóbora, até que o dia acabasse e ele fosse embora para onde quer que fosse embora, já que ninguém sabia onde era porque ninguém quis perguntar, e por isso caminhava falando baixo, parecendo querer ser ouvido apenas por si mesmo.
Mas só parecendo.
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