( aperte o alt ) "Caríbdis" • Edição Nº46
Caríbdis
Ela estava dirigindo havia horas, esperando para ver se ele conseguia parar de chorar. Assim talvez o rosto desinchasse um pouco antes que ele precisasse cruzar o saguão para chegar ao elevador - não que, à essa hora da madrugada, as chances de alguém estar por ali fossem lá muitas.
O tempo todo ela esteve falando sobre qualquer coisa que viesse à cabeça, sem dar muito tempo pra uma resposta ou mesmo pra pensar a respeito. Tudo para fugir do único assunto que importava, eles dois, e manter aquela normalidade forçada, já que, oras, tinha sido ela quem decidira acabar com tudo de supetão, sem qualquer aviso, sem nem dar tempo a si mesma para absorver a ideia.
Mas, ainda que não admitisse, ele já sabia que isso estava pra acontecer.
Quando desceu do prédio da agência e a viu do outro lado da rua, esperando como nunca tinha feito, cabisbaixa como nunca esteve, ele sabia. Nem era preciso falar qualquer coisa. Não queria mesmo ouvir nada. Mas, ainda assim, ela falou, e toda palavra que dizia era desnecessária, dolorida. "Mais uma vez", pensou ele, "mais uma vez"; e olhava o céu da sexta-feira, que encerrava a semana trazendo nuvens pesadas e cinzentas, anunciando, finalmente, a chuva que se insinuara durante a semana toda.
Cortando a tempestade e o vento, o carro seguiu noite adentro, até enfim chegar ao prédio dele.
Estavam parados ali havia algum tempo, mas ele ainda não tinha forças para sair. Olhava para o rosto dela, que permanecia indiferente, evasivo. Olhava para si mesmo, fraco, derrotado. O que ela não sabia é que ele aproveitou para chorar muito mais coisas do que ela imaginava; pagou lágrimas que devia há tempos, para pessoas que seguiram adiante anos e anos atrás.
Por isso, estava até estranhamente grato.
Despediu-se com esse olhar.
E, com uma serenidade que não cabia no momento, fechou a porta ao sair.