( aperte o alt ) "Anfiguri" • Edição Nº41
Anfiguri
Na rua, em geral, era indiferença: as pessoas caminhando com rosto de nada.
Se paradas, passado o primeiro susto, em geral sorriam um sorriso protocolar e fechavam a cara de novo, dois passos depois.
Mas, naquele dia, foi como se algo abrisse seus olhos e o fizesse ver, de uma vez só, o quanto estranhava tudo aquilo. Sentiu um sentimento de urgência, de antecipação, como se fosse o único a enxergar uma onda imensa que surgia engolindo o sol no horizonte e se preparava para arrebentar tudo e todos sem dó, bem no meio daquela rua por onde iam, vinham, voltavam, gritavam com carros e bicicletas e uns com os outros, e onde guardas distribuíam suas canetadas e senhoras ficavam irritadas por que precisavam abrir as bolsas na porta giratória do banco e o garoto chorando no carrinho enquanto sua mãe, vestida com roupa de academia, bebendo água quente do squeeze e se achando gostosa, conversava com uma amiga que não ia à academia mas que dizia que dessa vez iria sim e ouvia "vai menina, vamos juntas" e o entregador levando nas costas um galão de 20 litros de água e que desviava dos carros que faziam fila para entrar no edifício-garagem lotado, na esperança de que alguém lá dentro resolvesse fazer qualquer coisa aqui fora e enfim eles pudessem estacionar e levar a vida adiante, afinal ela, a vida, não espera por ninguém, e já estavam todos ali há incontáveis minutos suportando a barulheira da saída das crianças do colégio que só sabem falar entre si aos berros e corriam dando susto aparecendo na janela e hoje em dia já não dá pra saber quem é quem e vai que é pivete e os policias na esquina que ficavam conversando ao invés de dar um jeito nessa bagunça toda e naquela família de sem-teto que se mudou para debaixo da marquise da farmácia que fechou há tempos e que ficavam pedindo dinheiro a todos e a ninguém porque todo mundo finge não ver e depois diz que morre de pena dessa gente que não tem teto quando chove mas hoje tá um calor infernal e patricinhas que atravessam a rua numa corridinha que lembra bem a de passarinhos quando correm para pegar farelo e elas, as patricinhas, escondidas por detrás de óculos caríssimos que escondem seus rostos de patricinhas e não disfarçam seu jeitinho de passarinhos que nem farelo têm para o qual correr mas que correm porque precisam ser vistas correndo sua corridinha de patricinhas pra chamar atenção dos meninos um pouco mais velhos das escola e que não falam tanto aos berros mas ficam se provocando pra ver se elas afinal os vêem também e
Enxergou tudo de uma vez só, e sentiu como se levasse um soco no cérebro. O coração batia forte demais, e suava nas mãos.
Respirou fundo e fugiu de volta para dentro de si, tentando encontrar algum silêncio; ou, ao menos, os mesmos velhos ruídos, já tão familiares.