( aperte o alt ) - "Anecúmeno" • Edição Nº31
Anecúmeno
Eu percebi quando, pela manhã, os ventos vieram, e bateram à porta e, envergonhados, desapareceram.
A música chegava de algum lugar, e foram eles que a trouxeram. Mas, ainda assim, ficaram à porta, bateram, e não os atendi: ocupava-me do que havia aqui dentro, ainda que, aqui dentro, houvesse apenas eu e um universo inteiro, onde nascem e morrem criaturas e mundos e significados e coisas e sons e cheiros e sabores e sensações, a cada segundo, a cada pensamento, como as fagulhas que escapam das brasas de uma fogueira para alçar seu único voo rumo ao firmamento, sabendo que apagarão em breve, mas nem por isso menos dispostas a tentar.
Respiro fundo esse ar distante, desconhecido, que mal sei como cheguei a experimentar: quem sou eu, ou qualquer um, para que lhe sejam apresentados horizontes tão diferentes daqueles nos quais nasceu, ou onde cresceu, e onde lhe imputaram tantas certezas que não se baseiam em nada a não ser em meras convicções vazias do que se acredita serem verdades indubitáveis, imutáveis, eternas.
Respiro o cheiro que vem do mar, vejo as cores passeando, e penso na infinidade de quilômetros que me separam daqueles que me conhecem e penso se, daqui, consigo também me ver à distância, e com certa alegria percebo que sim: não sou aquele que ficou lá, entrando e saindo de escritórios carregando problemas que jamais concebi, mas sou este que está aqui, distante, perdido, e, assim, finalmente encontrado, centrado, ajustado.
Não há que ser daqueles que se colocam e conformam, mas dos que buscam, eternamente insatisfeitos, mas nisso encontrando, antes, satisfação: o inconformismo de saber que a vida é muito mais do que aquilo que apresentam, e muito mais do que o comer e vestir e falar e sorrir e recomeçar, porque não há quem não seja do tamanho do mundo, não há quem não seja, em si, todos os outros, e essa é a maravilha e fardo que carrego, ora arrasto, ainda que tanto de mim se desprenda pelo caminho em forma de palavras mal construídas e de ideias mal torneadas.
Mas sigo e entendo, sigo e enfrento, e se comigo houver quem quiser decifrar, convido: é vida demais para carregar sozinho.