( aperte o alt ) "Ábdito" • Edição Nº52
Ábdito
Ele finalmente percebeu, depois de mais de trinta anos, o que estava à sua frente desde sempre.
"Há mais de trinta anos", era tudo em que conseguia pensar.
Enquanto soltava um suspiro longo demais, revia fotos que apareciam sem dó, em sequência, de uma vez só, nesse sistema passivo-agressivo em que os algoritmos das redes sociais parecem trabalhar incansavelmente. O que bateu forte foi a ideia, quase uma epifania, como um soco no estômago: não há quem não possa ser substituído, esquecido, deixado pra lá. O sol continua a nascer. A engrenagem continua funcionando, faça você parte dela ou não.
Ao mesmo tempo, havia uma coisa meio libertadora no meio disso tudo: durante muito tempo, gastou uma energia imensa, um esforço enorme, como se fosse o único responsável por manter laços que, oras, nunca existiram do jeito que achava, por causa de sentimentos que nunca foram sentidos como pensava. Além do mais, quem disse que fazer isso era papel dele?
O mundo era outro, afinal. As pessoas seguiram adiante, só isso.
A nostalgia fez algumas lágrimas descerem, é claro, mas ele não quis enxugar nenhuma delas: seriam as últimas para essas memórias, e decidiu que elas, as lágrimas, só iriam embora quando quisessem, quando caíssem por causa do próprio peso e se espatifassem no chão.
Desligou tudo, enfim. Era hora de ser inserido na própria realidade e deixar novos mundos nascerem.
Assim, deu boa noite a si mesmo, sem saber em qual deles acordaria.